Por Yvone Dias Avelino – Professora titular do Departamento de História da PUC-SP
Há bem pouco tempo, diversos movimentos de protesto se direcionaram para o espaço público, onde estavam expostos monumentos que representavam através da arte ações humanas.
A razão desses movimentos ocorrerem foi o comportamento autoritário e desumano de um policial norte-americano que, ao aprisionar George Floyd, um negro, abusou da sua autoridade afogando com o joelho a garganta do prisioneiro que não conseguia se movimentar. Perdeu a respiração e veio a falecer antes de dar entrada no hospital.
As reações vieram logo em seguida a esse ato atroz, e difícil de aceitar, que mostrava o autoritarismo do policial recheado de racismo e ódio aos negros.
Em vários lugares do mundo as atitudes dos cidadãos se encaminhavam para um antirracismo ante uma atitude que já não se aceita em pleno século XXI. Somos todos iguais, independentemente da cor da pele, da posição social ou do século. Essas reações sociais, além das passeatas e dos confrontos com a polícia local foram mais além, derrubando estátuas que ali foram postas em tempos anteriores.
O primeiro acontecimento se deu na Inglaterra, com a derrubada da estátua do comerciante de escravos Edward Colston. Na Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo II também foi jogada ao chão pelas atrocidades que o monarca praticou no Congo. Nos Estados Unidos, foram alvo vários monumentos de escravocratas, generais e até uma que homenageava Cristóvão Colombo.
São atitudes amplas de manifestações sociais que não aceitam essas homenagens nos dias de hoje. Nos Estados Unidos e na Europa, sobretudo na Inglaterra são os países onde a recente onda de iconoclastia formou um verdadeiro tsunami social. Segundo a escritora Vilma Gryzinski:
Talvez um passeio pela praça de Westminster, o espaço de alta concentração de estátuas no coração de Londres, nos ajude a entender as complexidades históricas e as personalidades que as escreveram – algumas literalmente, como Winston Churchill, que disse que pretendia deixar escrito seu próprio lugar na história. Disse e fez magnificamente. O envoltório de laminado plástico que deixou a estátua de Churchill na praça parecida com um banheiro químico incendiou o debate. A estátua foi embrulhada depois de ser pichada, com a frase: Era racista!
O mesmo homem que na II Grande Guerra Mundial não permitiu que a Inglaterra se dobrasse ao nazismo, era imperialista, racista e alcoólatra, por apreciar boas bebidas que ingeria até no café da manhã.
São os novos significados que a memória apaga e altera os seus valores e passa a dar novos significados, próprios, dos padrões morais contemporâneos. Se pensarmos que a arte é uma constante na história da humanidade, que todas as culturas possuem arte e que, no pensamento ocidental, a arte é a tradução material da beleza que, por sua vez, é uma noção da filosofia clássica, que pode ser entendida como a essência invisível de tudo o que é belo. Nessa perspectiva, independentemente de todo o relativismo cultural, o ser humano, de qualquer tempo e lugar, considera belo tudo que seja harmônico e simétrico.
Esse debate se estendeu, e muito se tem escrito nos jornais da Grande Imprensa, em revistas e lives que têm trazido a questão histórica da escravidão, que tão bem foi pesquisado pelo grande e competente sociólogo Florestan Fernandes, que nos deixou uma vasta herança intelectual, contribuição ímpar sobre o assunto. Com essa disseminação através das mídias, o assunto chegou ao Brasil, mas nenhum movimento violento aconteceu. Como lembram os historiadores Paulo Pachá da UFRJ e Thiago Krause, da UNIRIO, “A estátua de Borba Gato e o monumento às Bandeiras, foram pichados com tinta vermelha, em 2016; por outro, o movimento negro tem produzido críticas fundamentais às dinâmicas racistas de nosso país, tanto no presente quanto no passado”.
O historiador é um cidadão do presente, e ao trazer o passado para analisá-lo, não pode perder essa condição. Apagar significados históricos é como ver a História sem movimento, estática. Críticas devem ser feitas àqueles que as merecem, sem adotar a violência para destruir um trabalho artístico que teve seu mérito como uma obra na maioria das vezes encomendada por gestores para determinadas festividades. Recuperá-las, trazendo a verdade, é o grande compromisso da História, em prol daqueles que sofreram um estigmas injustiças sociais, como indígenas, negros e mulheres que não pode se reproduzir no presente sem um apontamento correto. Esperar as ressignificações históricas que como a Justiça, também não é cega, é sempre melhor do que destruir um patrimônio nacional fazendo a leitura no calor da hora. Vamos pensar em uma reavaliação de um passado, seja ele distante ou próximo.
Entrevistando rapidamente por telefone o historiador Marcos Rogério da Silva Moreira deu sua opinião sobre o assunto:
Os eventos envolvendo a derrubada das esculturas indicam uma certa crença de que o passado violento, racista e escravocrata que assombra a história de diferentes povos pelo mundo e que produziu formas de desigualdades extremas no seio das sociedades contemporâneas, de certa forma, foi materializado nas esculturas e monumentos que homenageiam comerciantes de escravos mundo afora e, dessa forma, os monumentos que outrora homenageavam personalidades cujas ações eram consonantes com os valores dominantes em sua existência, acabam sendo o alvo preferencial da cobrança dessas dívidas e dos correspondentes rituais de exorcismo.
[…]
Essas figuras fantasmagóricas, descoladas de seu tempo e espaço, que ainda assombram as almas vivas dos herdeiros de seus horrores, são aquelas que atormentam as parcelas da sociedade mais desfavorecidas, quase sempre excluídas, que sofrem toda sorte de discriminação e preconceitos.
A catarse dos participantes ao se livrarem do espírito opressor materializado na escultura desconsidera qualquer outro valor que possa estar em jogo.
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