Fortaleza de Peniche era uma das principais prisões da ditadura portuguesa, encerrada em 1974 e agora virou museu em Portugal
Faz tempo que os guardas abandonaram seus postos na fortaleza Peniche, na província de Estremadura, a 102 km de Lisboa, em Portugal. Os presos também deram lugar aos funcionários civis, arquitetos e um um velho que se deleita em ver a mais famosa prisão política da ditadura portuguesa voltar à vida como um testemunho em pedra e concreto das crueldades daquele período.
Seu nome é Domingos Abrantes, um político comunista que passou 12 anos preso em Peniche durante o Estado Novo de António de Oliveira Salazar — hoje com 83 anos, ele é membro do Conselho de Estado de Portugal. Nove deles cumpriram pena na fortaleza, uma construção do século XVI que era usada como cadeia para dissidentes e opositores do regime entre 1934 e 1974. “As pessoas costumavam dizer que ela era pior que as prisões fascistas”, contou ao jornal Público.
“Era a única prisão em que os detentos tinham celas individuais. O sistema todo aqui era feito para fazer tudo mais difícil. Nós não tínhamos livros e a maior parte do tempo era isolamento, sem poder nem falar com o outro”, completou.
No final de abril, no 45º aniversário do fechamento da prisão, durante a Revolução dos Cravos, a fortaleza reabriu suas portas como o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade. A mostra inaugural teve um painel com os nomes de 2,5 mil pessoas que foram presas na penitenciária improvisada durante o Estado Novo. A ideia, que aconteceu depois que o governo português anunciou que a transformaria em um hotel, provocou a ira da população de Peniche dois anos atrás. O museu foi apoiado por empresas como a companhia aérea TAP Portugal e por empresários do ramo da telefonia.
Apesar de haver pequenos museus dedicados aos prisioneiros do regime em Oporto e em Cabo Verde, o projeto de Peniche foi o primeiro centro nacional sobre o assunto e pretende mostrar o passado do país aos jovens portugueses. “Para nós, esse é um jeito de mostrar às gerações atuais como era Portugal sob o fascismo”, disse Paula Araújo, chefe de patrimônio cultural do governo português, ao Público. “Nós queremos que isso aqui seja uma lição para as crianças. Queremos que as escolas venham aqui e vejam tudo para que nada disso se repita no futuro”, continuou.
Com a extrema-direita em ascensão na Europa, o museu tem um papel crucial, agregou Paula. Abrantes é um dos ex-presos que compartilhou suas memórias e seus pertences durante a pena como parte do projeto de memória histórica. Décadas depois de solto, a geografia da penitenciária e as rotinas disciplinares seguem frescas em suas lembranças: ele contou a Paula, por exemplo, sobre a tentativa de um detento em fugir pulando no mar e sobre a alegria que os prisioneiros tinham quando lhes permitiam passar uma hora no terraço, no “banho de sol”.
Ele também encontrou a cela em que passou sete anos na solitária da mesma forma: o lugar está vazio, sem a cama onde dormia nem os equipamentos utilizados pelos guardas para preservar os detentos em silêncio. A única diferença, segundo ele, é a janela: conscientes da beleza da vista que as pequenas saídas das celas proporcionavam, das ondas do Oceano Atlântico, as autoridades fecharam as janelas para impedir que os presos pudessem ver o mar.
Alguns prisioneiros não aguentavam, diz Abrantes: eles tinham colapsos mentais e alguns morriam nas suas celas faltando cinco ou seis anos para acabar suas penas. Não eram raros os suicídios — dos detentos e dos seus familiares. “Lembro muito bem do dia em que precisei contar a um colega detento que a esposa dele tinha se matado. Ele colocou a mão no coração e caiu”, revelou.
Portugal, assim como a Espanha, ainda luta para reaver seu passado ditatorial. Muitos portugueses reclamam que não existem muitos museus nem textos sobre o período, e que o país segue pagando um preço alto pelos 48 anos do fascismo de Salazar. “Pessoas eram assassinadas e aprisionadas, então se os jovens sentirem que a liberdade caiu do céu, eles precisam saber que estão errados”, finalizou Abrantes.
No Brasil, o cantor e compositor Chico Buarque compôs uma canção pela ocasião da Revolução dos Cravos: Tanto Mar, de 1975, que só apareceu em um show durante a turnê dele com Maria Bethânia, em 1978 — a ditadura brasileira havia censurado a letra três anos antes. A revolução portuguesa e a situação brasileira aparecem no final da música, quando ele diz que “Lá faz primavera, pá/ Cá estou doente/ Manda urgentemente/ Algum cheirinho de alecrim”.