Recife é uma das cidades que possui um número incontável de histórias de assombrações no Brasil
Muitas coisas me levam a viajar incansavelmente por este mundo, porém a que mais se destaca é a curiosidade. Sou uma pessoa inquieta por natureza. Daquelas que quer saber de tudo, que cavuca informação onde não há nada aparente para ser revelado. Sabe a pessoa que vai para uma pacata praia do nordeste, por exemplo, e dá um jeito de saber se rolou algo interessante por lá, mesmo que não haja nenhum relato? Então, sou dessas.
Essa curiosidade me levou a muitas descobertas incríveis e aumentou ainda mais a minha vontade de investigar fatos interessantes em cada lugar que chego. Uma das minhas grandes paixões é conhecer “causos” e estórias de assombração. Simplesmente sou fascinada por esse tema. Pensando nisso, resolvi compartilhar com você algumas histórias da cidade mais imaginativa, criativa e assombrosa que visitei no Brasil e que possui um terreno fértil em mistérios: Recife, a terra das assombrações.
Os fantasmas do Teatro de Santa Isabel
No coração da capital pernambucana, em frente à Praça da República, ao lado dos Palácios do Governo e da Justiça, fica o imponente prédio do Teatro de Santa Isabel, um primor da arquitetura neoclássica do século XIX. Foi construído pelo engenheiro francês Louis Lérger Vauthier entre 1841 e 1850 e, por dentro, tem espaço para quase novecentos espectadores. Além de ser palco de concertos e espetáculos grandiosos, no passado o teatro também foi cenário de debates cívicos, como os que marcaram a campanha abolicionista, e serviu de tribuna para a eloquência de personalidades do porte de Joaquim Nabuco, Castro Alves e Tobias Barreto.
Mas esta construção carregada de significados para a história de Pernambuco também esconde mistérios insondáveis. Nos camarins, na platéia, nos corredores, nas frisas e camarotes, desfilam visagens e são ouvidos sons arrepiantes que se confundem com as muitas lembranças guardadas no prédio. Em seu livro “Assombrações do Recife Velho”, o escritor e sociólogo Gilberto Freyre descreve alguns desses acontecimentos inexplicáveis: “O que se murmura entre os empregados antigos e discretos do Santa Isabel é que em noites burocraticamente silenciosas se ouvem, no ilustre recinto, ruídos e aplausos, palmas, gritos de entusiasmo de uma multidão apenas psíquica. Mas sem que se possa precisar a que ou a quem são os seus aplausos de bocas e mãos que não aparecem”. E acrescenta o Mestre de Apipucos: “Há também quem afirme ter visto no interior do Santa Isabel, em noite de silêncio e rotina, a figura de austera senhora do Recife, há longos anos morta e sepultada em Santo Amaro”.
E as aparições na tradicional casa de espetáculos não deram trégua ao longo das décadas, embora tenham perdido muito do charme e da elegância. Na reportagem intitulada “…mas que eles existe, existem”, publicada no Diário de Pernambuco do dia primeiro de outubro de 1992, a jornalista Sandra Correia registrou o seguinte caso: “…Lourdes Medeiros, faxineira do Teatro de Santa Isabel, reluta em falar no assunto. ‘Dizem que sou louca’. Numa determinada ocasião, Lourdes ficou presa no banheiro do teatro com uma mulher alta e loura, com algodão na boca e nas narinas. ‘Queria sair e ela estava na porta’. Nem mesmo gritar resolveria: ‘perdi a voz’”.
Os funcionários do teatro relatam ainda que às vezes à tarde é possível ouvir som do piano de cauda, tocado por mãos invisíveis. De longe escutam a suave melodia e, quando se aproximam do instrumento, a música cessa repentinamente.
E se uma assombração é somente ouvida, outras duas são frequentemente vistas no local. Ninguém sabe dizer quem é a bailarina que, vestida em trajes antigos, dança no tablado vazio sob uma luz azulada. É muito comum os empregados enxergarem a imagem dessa esguia figura refletida nos espelhos que existem nos corredores. Quando, assustados, eles olham para o palco, a moça desaparece como uma fumaça branca soprada pelo vento.
Outros ainda se depararam com a alma penada de uma poetisa que surge declamando versos sobre os segredos do Recife. Os servidores que trabalham no Santa Isabel já nem se espantam mais com tantos encontros sobrenaturais: eles costumam dizer que “teatro sem fantasmas não é teatro”.
O Barão Perseguido pelo Diabo
No Século XIX, ficou conhecida no Recife a história de um Barão que teria feito um pacto com o Diabo. Não se sabe o que o fidalgo pediu ao “Coisa Ruim”, mas contava-se o Demônio o perseguia, possivelmente cobrando o pagamento que havia sido combinado.
No livro “Assombrações do Recife Velho”, o escritor e sociólogo Gilberto Freyre explica que o fidalgo muitas vezes estava se divertindo com os amigos, em noitadas na capital pernambucana e, de repente, recebia um sinal misterioso: “era do Chifrudo para ir encontrá-lo sozinho nas brenhas, tarde da noite”. Ele seguia para cumprir o compromisso montado num cavalo sinistro “que ninguém sabia se era deste mundo, se do outro”.
E quando o homem voltava desses encontros, “parecia que ia botar a alma pela boca”, pois “seu rosto era então o de um cadáver e suas mãos, também, as de um defunto”. Ainda de acordo com Freyre, tudo indica que o Diabo acabou ficando não só com alma, mas também com o corpo do Barão. Tanto que, para fingir enterrá-lo no Cemitério de Santo Amaro, o mais tradicional do Recife, “a família tivera que encher o caixão de pedra”.
O Fantasma da Debutante
Num dos mais bonitos prédios da Rua da Aurora, no Centro do Recife, funciona hoje o Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães – o MAMAM. Porém, mais do que apenas resguardar a cultura e abrigar importantes exposições, o espaço também é cenário de uma tristonha aparição fantasmagórica, a lembrança sobrenatural de uma história trágica.
O prédio, cheio de salões e escadarias, já foi a sede do Clube Internacional do Recife, no começo do século XX. E tudo aconteceu durante um baile no ano de 1920 para celebrar os 15 anos de uma bela moça chamada Ana Lúcia. Contam que ela estava linda em seu traje branco ao descer as escadas do primeiro pavimento para o salão principal. Mas no meio do caminho tropeçou e caiu por vários degraus em frente aos convidados. Ela havia quebrado o pescoço!
Os funcionários do museu dizem que até hoje o espírito da adolescente assombra a construção histórica. Nas noites caladas, Ana Lúcia caminha solenemente pelos corredores. A sua beleza a princípio fascina e depois amedronta as testemunhas. E muitos servidores públicos – inclusive até alguns guardas municipais – pediram afastamento do trabalho do museu para não terem que se deparar com o fantasma da debutante.
Pavores em Afogados
O bairro é um dos mais tradicionais do Recife. Lugar de intenso comércio e muitas residências, tem um amigável clima suburbano com moradores pacíficos que se conhecem e se cumprimentam todos os dias. Lá os altos prédios ainda não substituíram as casas com quintais amplos. À primeira vista, ninguém é capaz dizer que, à noite, Afogados é visitado por estranhos espíritos e espantosas assombrações.
O nome do local já tem uma origem macabra. Segundo o pesquisador pernambucano Leonardo Dantas Silva – no livro Arruando Pelo Recife – ali existia um afluente do Capibaribe chamado Rio dos Afogados “onde , em 17 de fevereiro de 1531, sete marinheiros da expedição de Martin Afonso de Souza vieram a perecer”.
A via mais importante do bairro é a Estrada dos Remédios, que tem 2.423 metros e foi aberta em 1850. Na metade do século XX, a maior parte dos habitantes de Afogados se concentrava na Vila dos Remédios, um conjunto residencial às margens daquela estrada, que na época era cercada de árvores sombrias. Nessas sombras se escondiam vultos misteriosos que provocavam tremendos sustos nos passantes, principalmente os que seguiam de madrugada para a feira livre realizada semanalmente na vizinhança. Eles ouviam apavorantes sussurros e chegavam a ser perseguidos difusas aparições.
No começo da década de 1960, uma assombração em particular trouxe medo à vida dos moradores de Afogados. Era uma bela mulher, de cabelos escuros, vestida com roupas decotadas e chamativas que caminhava sozinha pelas ruas do bairro nas horas mortas. Sem pudor, se insinuava para todo tipo de homem que cruzasse o seu caminho: jovem ou velho, solteiro ou casado, pobre ou rico. Quando o desavisado caia em seus encantos, era levado para o beco escuro. Ao se entregar às caricias da moça, a vítima descobria que estava abraçado a uma caveira. Os corajosos ainda saíam correndo em pânico. Os covardes só eram encontrados pela manhã, desacordados.
A mulher fantasma perpetrou tantos ataques que os homens começaram a evitar andar à noite pelas calçadas do bairro. Mas alguns, lamentavelmente, não podiam evitar correr esse risco. Ficou famoso o caso de um homem de seus sessenta e poucos anos que teve um encontro nada agradável com a fêmea espectral. Ele era civil, mas trabalhava como motorista numa instalação militar. As horas extras eram frequentes e, depois dessas jornadas esticadas de trabalho, voltava para casa com passos apressados.
Numa dessas noites, quando Afogados estava coberto por um manto de silêncio e trevas, o motorista seguia seu trajeto costumeiro e percebeu que a tal mulher o espreitava na esquina próxima à igreja do Largo da Paz. Ele fingiu que não viu e procurou andar mais rápido. Mas a assombração foi em seu encalço e, por mais que o sujeito acelerasse, ela se aproximava com passadas leves e ligeiras que só uma alma penada pode dar. O pobre homem chegou esbaforido ao portão de casa, mas aliviado por achar que estava em segurança.
Puro engano. Ele tinha atravessado o jardim e tentava nervoso achar a chave para abrir a porta da frente, quando percebeu que a mulher também tinha chegado ao portão. Ela o atravessou sem precisar abri-lo e veio rebolando em direção ao apavorado motorista que, a essa altura, já tinha deixado o chaveiro cair no chão. Ficou a poucos centímetros do camarada e revelou a ele uma face de caveira. A transformação que veio acompanhada de um nauseante odor de cadáver. O motorista soltou um grito de pavor e desmaiou.
Foi socorrido pela esposa que logo suspeitou de um ataque cardíaco. O problema dele era outro: medo na sua forma mais terrível. O coitado não foi o mesmo depois desse episódio. Tornou-se meio acabrunhado, desconfiado de tudo e sempre temeroso de sair de casa à noite.
Cemitério?
Na Década de 60, os moradores de Afogados atribuíam as constantes aparições de fantasmas a uma suposta profanação cometida no local. Corria um boato de que o mercado público do bairro, um dos mais movimentados do Recife, tinha sido construído sobre um antigo cemitério (talvez aquele onde foram enterrados os tripulantes mortos na expedição de Martin Afonso de Souza). A hipótese nunca foi comprovada, mas também não foi desmentida. O fato é que, até bem pouco tempo, quem passava por perto do mercado sentia um cheiro de coisa podre que nem o mais poderoso detergente conseguiu eliminar do prédio.
Ainda segundo alguns habitantes do lugar, esse desrespeito aos mortos facilitava o aparecimento de espíritos zombeteiros como o “Zé Pilintra”, entidade identificada nas rodas de magia africana. Os rapazes que voltavam de festas à noite costumam se deparar com essa figura: chapéu na cabeça, roupa branca, jeito de malandro. Quando se aproximava do grupo, soltava uma estridente gargalhada. Não fica um sujeito de coragem para contar o resto da história.
A Lenda do Encanta-moça
A história mais melancolicamente romântica da tradição recifense deu origem ao nome de uma antiga localidade na Zona Sul da cidade.
Este relato tem algo de conto de fadas, mas sem final feliz. Rezam as antigas crônicas que uma iaiá branca, moça rica e bela, estava passeando à noite numa região pouco habitada do Recife do tempo dos grandes engenhos quando se viu perseguida pelo marido ciumento. Ele cismou que ela o traía com um escravo e poderia até matá-la. Na fuga desesperada contra o agressor, a jovem esposa teria desaparecido no ar: como que por mágica, teria se “encantado” nos mangues em torno Capibaribe, perto do lugar onde o rio de águas escuras se encontra com o Atlântico, um trecho que hoje pertencente ao Bairro do Pina.
Ainda diz a lenda que a tal moça acabou voltando do Mundo do Além para incorrer uma espécie de vingança contra os abusos permitidos pela sociedade machista da época. Conta-se que, em noites de lua cheia, ela aparece nua para atrair os marmanjos desavisados que ousam circular naquelas imediações. A vítima sente uma atração irresistível pela aparição desnuda, mas, quando se aproxima, vê o objeto de desejo sumir em meio à bruma fina da madrugada. Alguns ficam loucos e acabam morrendo atolados no mangue. A ameaça desse encontro sobrenatural era levada tão a sério que, por muitas décadas, todos evitavam passar nas horas mortas naquela área de praia e mangue. Até meados do século XX, o lugar ficou conhecido pela poética denominação de “Encanta-Moça”.
Gilberto Freyre registrou o conto popular no livro “Assombrações do Recife Velho”:
“Nunca mais se viu a iaiá que devia ser mulher bonita, além de branca, para ser tão oprimida pelo senhor seu marido. Talvez tenha se tornado alamoa: e ruiva como uma alemãzinha apareça nas noites de lua a homens morenos e até pretos, assombrando-os e enfeitiçando-os com sua nudez de branca de neve. Mas desmanchando-se como sorvete quando alguém se afoita a chegar perto de seu nu de fantasma. Desmanchando-se como sorvete e deixando no ar um frio ou um gelo de morte. Frio ou gelo que é aliás característico de quase toda a assombração recifense em que um morto aparece a um vivo.”
Visto que quase toda narrativa lendária se origina de um fato concreto, há quem especule que a moça não encantou-se e sim foi morta pelo homem com qual se casara. Outros defendem uma teoria mais mística: ela virou encantada mesmo, mas não fora cassada pelo marido e sim por um demônio ou espírito malvado. Impossível chegar perto da verdade nesse caso, pois não se tem nem a certeza do século no qual tudo supostamente teria ocorrido.
No fundo, a iaiá espectral é uma versão recifense das sereias e outras entidades femininas ligadas às águas que usam a beleza para levar os homens à perdição. Também se assemelha à Alamoa (como menciona Freyre), loira macabra que assombra visitantes da Ilha de Fernando de Noronha.
Mesmo nos tempo atuais, com todo tipo de casas e prédios ocupando aquela área (inclusive um grande shopping), dizem que os encontros com a iaiá encantada não deixaram de acontecer. Os moradores comentam que a bela moça fantasmagórica passou ser vista à noite na Praia do Pina – versão contemporânea do malassombro que inspirou o conto “Ano Novo, Medo Velho“, de André Balaio.
Mulher Sinistra do Pátio de São Pedro
O cenário é dos centenários prédios do Pátio de São Pedro, no tradicional Bairro de São José. Dizem que num dos sobrados de quatro andares existentes na lateral da Igreja de São Pedro (a construção do século XVIII que dá nome ao lugar), reside uma figura que provoca calafrios nos que a encontram.
Trata-se uma mulher jovem e bonita, de longos cabelos negros e com um vestido escuro provocante – embora seja um traje bastante fora de moda. É vista a caminhar lentamente pelos corredores e, principalmente, pelas escadarias do antigo edifício. Tem no rosto uma expressão de pesar, como quem padece de um eterno luto. Os que se deparam com ela logo percebem que é uma visagem, um espírito desencarnado: depois de alguns passos, a moça misteriosa desaparece no ar, como por encanto.
No sobrado, uns poucos cômodos são moradias. Na maioria das dependências, trabalham costureiras e prestadores de serviços, como pintores de placas. Muitas dessas pessoas já testemunharam a aparição. Uma decoradora que trabalhou no lugar, por exemplo, relata que ouviu falar sobre a origem da fantasmagoria. Seria o espectro de uma mulher que alugou um dos quartos em meados da década de 1950.
Era bela sim, mas vivia só e carregava a dor de uma desilusão: havia sido abandonada pelo amante. Comenta-se que, para sobreviver, trabalhava como prostituta. Certo dia matou-se ateando fogo ao corpo. Morte lenta e dramática de quem tenta queimar a dor de uma constante amargura. E desde então virou malassombro, alma-penada, eternamente presa a este plano de existência por causa do terrível pecado que cometeu.
As pessoas que convivem no sobrado já tentaram pôr fim ao sofrimento desse espírito encomendado missas e requisitando bênçãos dos padres no próprio edifício. Logo depois dessas medidas as aparições deixam de ocorrer, mas não por muito tempo – não demora e alguém se depara novamente com a sinistra mulher a caminhar pelos corredores.
Os Crimes do Papa-figo
Por anos a fio, o temor de muitos moradores do Recife esteve relacionado à inclemência de um tipo de monstro desalmado que, segundo dizem, não hesitava em raptar e matar crianças para roubar-lhes o fígado. O povo o chamava Papa-figo, pois devorava o órgão arrancado dos corpos das pequenas vítimas. Contam que, periodicamente, assassinos com tal comportamento atuavam em distintos bairros da capital pernambucana como São José, Graças, Benfica e Dois Irmãos. E também se têm notícias deles nas pequenas localidades da Zona da Mata, como os povoados em torno das usinas açucareiras. Por isso, mães pernambucanas de várias gerações usaram esse bordão para domar os filhos desobedientes: – Menino vem pra casa, sai da rua, senão o Papa-figo te pega!
De acordo com os relatos, o Papa-figo comete esse tipo de atrocidade não por prazer, mas para curar-se de uma horrível doença no sangue que o deixa abatido e deformado pelo surgimento de chagas asquerosas. Conforme dizem, o remédio para a misteriosa síndrome seria comer fígado de criança – e quanto mais gorduchinha e corada ela fosse, melhor. Há quem diga que existem duas “espécies” de Papa-figos: um deles de aparência quase normal, confundível com qualquer pessoa, pois disfarça as suas pústulas com roupas fechadas; o outro seria um sujeito de pele amarelada, de orelhas maiores que o comum, peludo e com unhas grandes e sujas.
Seja feioso ou não, o Papa-figo tanto pode atuar sozinho como se valer de fiéis comparsas para escolher e capturar os pequenos. O relato mais conhecido remete a algo que teria ocorrido no final do século XIX, época em que boatos assim ganharam força. Um senhor de família influente no Recife foi acometido pela estranha doença. Os sintomas se manifestaram logo: começou a ficar amarelado e sem ânimo. Também não suportava ficar exposto à luz do sol, pois se cobria logo de ferimentos. Contaminação do sangue, diziam.
Os poucos que o viram ficaram tomados de pavor. Os médicos não conseguiam prescrever medicação eficiente. Tornou-se recluso, deprimido, raivoso. Uns mais supersticiosos diziam que ele estava virando lobisomem. Quando as coisas pareciam sem esperança, um negro velho, empregado da família, chegou para o senhor e disse: – O sinhô tem cura, mas tem que comer figo de criança nova. Se quiser eu saio pra caçar.
O empregado recebeu autorização do patrão e seguiu pelas ruas dos subúrbios, com um saco nas costas, pegando meninos. Usava doces para atraí-los. Desatenta por causa do sabor do “nêgo bom”, o tradicional bombom com banana, a presa era sufocada sem esboçar reação e metida num saco grande e sujo, desses usados para transportar açúcar tipo demerara. Quando perguntavam ao velho o que levava no saco, ele dizia que eram ossos de boi ou carneiro que serviriam para refinar açúcar.
Em outras situações, até recém-nascidos eram raptados, tirados sorrateiramente do berço num momento de distração da mãe. Nesses casos, o velho se encarregava de deixar uma quantia de dinheiro no berço vazio. De volta à residência do patrão, o malvado retirava os fígados e os oferecia ao convalescente, que precisava consumi-los ainda frescos e crus. Pouco a pouco, com o remédio macabro, o senhor foi melhorando até a cura completa.
Esse foi apenas um dos papa-figos que aterrorizaram as famílias do Recife. Ao longo das décadas, aparentemente eles se tornaram mais refinados e sutis quanto ao “modus operandi”, como se diz no jargão policial. Em meados do século XX, surgiu outro boato, desta vez composto por histórias que envolviam um carro preto.
Num dos casos mais comentados, crianças brincavam num descampado no bairro de Casa Amarela quando viram o tal veículo estacionar. Dele desceram dois homens dizendo que faziam vacinação para o governo. Os garotos, desconfiados, disseram que não queriam vacina e um dos homens falou que o outro “deixasse de conversa e enfiasse a seringa no menino”. Os moleques fugiram, mas não sem antes olhar dentro do carro negro, onde estava um Papa-figo peludo, com orelhas grandes e olhos vermelhos.
Em outro episódio relatado, os ocupantes do mesmo carro preto aproximaram-se de meninos oferecendo brinquedos. Ao chegarem perto, um dos garotos percebeu manchas de sangue no chão ao lado do veículo e desconfiou. Gritou para os outros fugissem, mas era tarde demais: um dos colegas acabou sendo raptado assim mesmo.
Praça Chora Menino
A Praça Chora Menino fica no bairro da Boa Vista, uma das áreas mais movimentadas da capital pernambucana. Próxima ao Colégio Salesianos, à Praça do Derby e às ruas do Progresso e das Ninfas, é hoje uma simples confluência de vias, espaço atravessado às pressas por gente desatenta, preocupada em chegar rápido ao seu destino. Poucos devem se perguntar a razão desse logradouro com tal nome que pode até soar poético. Menos pessoas ainda imaginam que o local foi cenário de uma tragédia e tem fama de mal assombrado.
Para entender esse caso é preciso voltar no tempo, conhecer um dos episódios mais sangrentos da história da cidade. Em meados do século XIX, o Recife enfrentou uma revolta violenta de uma tropa insubordinada que ficou conhecida como “Setembrizada”. Especialistas contam que o motim dos soldados foi provocado pelo extremo rigor na disciplina militar (que previa castigos físicos às faltas cometidas pelos praças) e até atraso nos pagamentos, entre outros motivos. O conflito irrompeu nos dias 14, 15 e 16 de setembro do ano de 1831.
Soldados e civis a ela associados saquearam a cidade, cometendo todo tipo de atrocidades e assassinando centenas de moradores, entre eles muitas crianças. O historiador Pereira da Costa dá um número de pelo menos 300 mortos nesses conflitos. As ruas ficaram repletas de corpos, e muitos teriam sido enterrados num local ermo, as terras do velho Sítio do Mondego, onde hoje fica a praça Chora Menino.
E esse nome vem de relatos que começaram a circular tempos depois da Setembrizada: dizia-se que quem passasse altas horas da noite perto da praça ouvia sempre choro de menino. Certamente tentou-se dar explicações “científicas” para o fato, de brincadeiras de estudantes a um tipo de sapo cujo coaxar seria semelhante ao choro de uma criança.
Mas quem ouviu o estranho lamento nega-se a aceitar tais teorias tão pouco consistentes: o pranto fantasmagórico, por certo, não tem semelhança com sons emitidos pelos viventes. É há quem diga que mesmo nos dias de hoje, se prestarmos bem atenção, vamos escutar os soluços e choramingos daquelas pequenas vítimas de um massacre provocado pela intransigência dos adultos.
Fantasmas do Capibaribe
Ele nasce como um riacho em Poção, no Agreste do estado. Torna-se caudaloso ao longo do seu curso de 248 quilômetros até chegar ao mar. Corta vários bairros do subúrbio do Recife, sempre atravessado por pontes de diversos tamanhos. No centro da cidade, o velho rio predomina na paisagem urbana: durante o dia, é como um límpido espelho que reflete a arquitetura dos prédios antigos. À noite torna-se misterioso quando reproduz o brilho das luzes artificiais ou da lua cheia. Apesar de sua beleza, o Capibaribe sempre provocou medo entre os recifenses – muitos garantem que ele é assombrado.
Reza a tradição popular que, naquelas águas, habitam fantasmas pecaminosos. Principalmente, almas penadas de suicidas – pessoas que usaram o rio como rota de fuga deste mundo cruel e permanecem no “limbo”, no purgatório entre o Céu e o Inferno. No breu das noites caladas, esses espectros de expressões angustiadas podem ser vistos por quem se aproxima das margens mais desertas. São como sutis vultos cinzentos sobre a superfície e provocam fortes arrepios em quem os testemunham.
E se hoje a poluição desencoraja qualquer um que pense em mergulhar no Capibaribe, até o começo do século XX o rio era atrativo para quem queria se refrescar ou mesmo procurava o alívio para males do corpo: por muito tempo a população acreditou que banhar-se no trecho do rio próximo ao bairro do Poço da Panela, na Zona Norte ajudaria na cura de doenças, algumas até mais graves como a cólera.
A verdade é que muitos desses banhistas desavisados pereceram porque não resistiram à força das correntezas. Os cadáveres eram encontrados metros adiante, inchados e roídos pelos peixes. Dizem que os fantasmas esbranquiçados dessas vítimas do Capibaribe ainda aparecem para pedir socorro aos viventes.
No rio atuou ainda um fantasma zombeteiro conhecido por Vira-roupas. Segundo registrou Gilberto Freyre no livro “Assombrações do Recife Velho”, ele atormentava as lavadeiras que ganhavam a vida às margens do rio. Era especialista em “roubar as trouxas das pobres mulheres camisas finas de doutores, toalhas de casas lordes, lenços caros de iaiazinhas”. Do Vira-roupas, claro, não se tem ouvido relatos recentes, já que ninguém mais usa o rio para lavar nada. Mas a assombração talvez ainda esteja por lá, à espera de uma lavadeira desprevenida.
Na década de 70, o Capibaribe transformou-se num verdadeiro monstro aos olhos do povo da cidade. Durante os períodos de chuva, o rio transbordava trazendo destruição e, muitas vezes, morte. Em 1975, ocorreu a maior de todas as inundações. Quando as águas baixaram e os moradores começavam a voltar para suas casas, deu-se um dos episódios mais insólitos da história pernambucana. O boato de que a barragem de Tapacurá havia estourado levou a população a concluir que o Capibaribe viria com mais força e cobriria toda a cidade.
Acreditou-se que o Recife passaria de “Veneza Americana” para “Nova Atlântida”, submersa e esquecida tal e qual a lendária cidade antiga mencionada por Platão. Instaurou-se o pânico generalizado e as pessoas corriam em desespero pelas ruas: uma cena dantesca que parecia antecipar o fim-do-mundo ou imitar o cinema catástrofe americano que estava em voga na época. O boato foi desmentido e as enchentes foram contidas nos anos seguintes com a construção de barragens. E o rio-monstro permaneceu adormecido desde então.
Mas isso não quis dizer que o Capibaribe não tenha mais segredos a esconder. Na manhã chuvosa do dia 13 de julho de 2004, por exemplo, uma multidão se aglomerou nas mediações da ponte Maurício de Nassau, no centro do Recife – mais precisamente na esquina da rua Martins de Barros com a rua 1º de Março. Todos queriam ver o conteúdo macabro do saco de plástico preto encontrado por um gari numa das margens do rio: sete crânios humanos!
Segundo testemunhas, o gari ficou muito assustado ao fazer a descoberta. E logo policiais militares, peritos do Instituto de Criminalística e soldados do Corpo de Bombeiros recolheram o saco e iniciaram as investigações. Os restos mortais foram “resgatados” e levados para o Instituto de Medicina Legal. Ninguém soube explicar como as caveiras foram parar no local. Mas logo os populares começaram a especular: “magia negra”, “restos de um antigo crime”, “brincadeira de mau gosto”. A verdade sobre essa ocorrência macabra nunca foi revelada.
Pingback: Embarque na Viagem
Pingback: Embarque na Viagem
Pingback: Embarque na Viagem
Pingback: Embarque na Viagem