Esporte & Aventura

As histórias desconhecidas dos estádios de futebol sul-americanos

O concurso para a construção da Bombonera, a prisão embaixo das arquibancadas do Nacional do Chile e as lendas sobrenaturais do Hernando Siles: quando os estádios contam mais histórias que as partidas de futebol.

Com a queda dos preços de passagens aéreas para destinos sul-americanos neste ano, muitos turistas brasileiros podem trocar as viagens para a Europa ou para os Estados Unidos para descobrirem os países vizinhos, como a Argentina, o Chile e a Colômbia. Segundo dados da agência de viagens ViajaNet, Buenos Aires foi a capital mais visitada por quem saiu do Brasil para outro país em 2016. Entre as dez cidades internacionais mais visitadas pelos brasileiros no ano passado, ainda está Santiago.

Em Buenos Aires, muitos brasileiros têm como visita obrigatória La Bombonera, lendária casa do Boca Juniors, time com mais torcedores do país. A fama internacional, aliás, se fez por causa dos espetáculos que a torcida costuma proporcionar a cada partida do time, e, no caso do Brasil, há ainda uma aura de medo. “Poucas equipes brasileiras conseguiram ganhar do Boca na Bombonera, e quem teve esse mérito, o Paysandu, em 2003, ficou marcado como herói”, comenta o jornalista esportivo Guilherme Henrique, que trabalhou na redação da Rádio Bandeirantes.

La Bombonera, no entanto, é repleta de histórias desconhecidas: uma delas diz respeito a sua própria construção: após diversas mudanças de campo e até de bairro – o Boca Juniors chegou a ser um time da região de Wilde, a cerca de 15 km de distância de La Boca –, a diretoria do clube decidiu criar um concurso para escolher o melhor projeto de estádio.

O desafio era erguer uma grande casa para o time, que já atraía multidões, em um terreno de 21 mil metros quadrados apertado entre o bairro da mesma forma populoso. La Boca, naquela época, já era o bairro dos trabalhadores italianos imigrados para as fábricas que, aos finais de semana, se divertiam vendo partidas de futebol.

O vencedor foi o projeto do engenheiro civil José Luis Delpini, cuja ideia previa a construção de um estádio para 50 mil pessoas em formato de “caixa de bombons”, em que os andares fossem semelhantes aos de um prédio. Outros projetos mais tímidos planejavam a construção de um estádio menor e com arquibancadas espaçadas no pequeno terreno.

Com a ajuda de dois sócios, o esloveno Viktor Sulcic – que havia fugido do fascismo na Europa – e de Raúl Bes, os trabalhos começaram em 1938 e duraram dois anos. No canteiro de obras, Sulcic se referia ao projeto como “Bombonera”, apelido que os jornais logo passaram a usar. O estádio só ganharia um nome oficial nos anos 1960, que jamais foi utilizado.

“Da tensa relação entre o terreno estreito disponível e a superfície requerida para o campo de jogo, emergiu uma estrutura que media entre os visuais, a forma urbana e as forças de cada piso”, diz um artigo da renomada escola de arquitetura italiana Torcuato di Tella.

Inaugurada em 1940 (em uma vitória do Boca Juniors sobre o San Lorenzo por 2 a 0), o estádio adquiriu sua particularidade mais temida logo no primeiro dia: ainda com apenas dois pisos em uma das laterais e uma pequena arquibancada em um dos cantos, sem as tribunas e as antenas de rádio da outra lateral e com um dos gols vazio atrás, os apertados torcedores “gritaram o jogo inteiro”, como diz a manchete de um jornal. Outra dizia que já havia se aplicado “o primeiro bombom”.

O terceiro piso do estádio começou a ser construído apenas em 1951, quando as tribunas já estavam erguidas. Em 1995, sob a presidência do hoje governante da Argentina, Mauricio Macri, o Boca reformou parcialmente o estádio para abrigar mais torcedores. À época, já era famosa a lenda de que a “Bombonera fala”, um mito criado pela torcida para explicar o temor dos adversários do Boca Juniors nos jogos em sua casa.

Em Santiago, do Chile, a história do seu templo do futebol mais famoso não é tão bonita quanto a da casa do Boca Juniors. O Estádio Nacional, inaugurado em 1938 e sede da final da Copa do Mundo de 1962, vencida pelo Brasil, é considerado também a sede da seleção chilena. Projetado pelo austríaco Karl Brunner, a ideia era que fosse parte de um projeto urbanístico mais complexo da capital do país, cuja função seria concentrar as práticas esportivas dos habitantes da cidade – por isso, a facilidade em acessá-lo por meio de metrô. O desenho arquitetônico ainda tentou privilegiar a visão da Cordilheira dos Andes ao fundo como extensão das arquibancadas.

 

O Estádio Nacional, no entanto, abrigou diversos eventos distintos ao futebol e que, na verdade, contam a história da política chilena: com o golpe de Estado que derrubou o presidente Salvador Allende, em 1973, o militar Augusto Pinochet usou as instalações da arena por cerca de dois meses para deter os primeiros opositores ao recém-instaurado regime. Segundo a Cruz Vermelha, sete mil pessoas permaneceram presas no estádio durante este período, e muitas delas foram torturadas e executadas por pelotões de fuzilamento.

Entre os casos mais famosos, está o do cantor e compositor chileno Victor Jara, levado ainda em setembro daquele ano ao estádio pelos militares e torturado durante quatro dias embaixo das arquibancadas com queimaduras de cigarro, simulacros de fuzilamento e fraturas nos dedos. Seu último poema foi escrito nos porões do estádio e conta brevemente como foram os últimos momentos de vida. Seu corpo foi encontrado apenas dias depois com 44 disparos. Hoje, o nome oficial do Estádio Nacional é, justamente, Victor Jara.

Curiosamente, o estádio também abrigou a última homenagem ao poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura em 1971 e que foi recebido por uma multidão nas arquibancadas no ano seguinte. Morto em decorrência de um câncer exatos 12 dias após o golpe, seu corpo foi levado do hospital ao cemitério por um cortejo de milhares de pessoas pelas ruas da cidade, todas vigiadas pelos soldados com fuzis engatilhados. “Foi o primeiro ato público de oposição”, escreveu o jornal francês Le Monde. Em meio à confusão por sua morte, o ritual só não foi organizado no estádio por causa da presença dos militares.

Por último, outro estádio repleto de mística na América do Sul é o Hernando Siles, em La Paz. Reconhecido pela FIFA como o campo de futebol mais alto do mundo, a 3.600 metros do nível do mar. A altitude é muitas vezes considerada uma adversária mais difícil do que a qualidade técnica dos times de futebol bolivianos, que nunca chegaram a uma decisão de Copa Libertadores da América, por exemplo.

Na Bolívia, o estádio é conhecido por outras histórias “místicas”. A principal delas – e levada muito a sério por todos os torcedores – diz respeito aos fatos sobrenaturais já registrados no local: construído sobre um cemitério nos anos 1920, foi nos anos 1970 que a lenda ganhou vigor, quando 25 pessoas morreram afogadas em uma grande caixa d’água situada dentro do terreno do Hernando Siles. Nos anos 1990, crianças desapareceram após a partida vencida pela seleção boliviana contra o Brasil, pelas eliminatórias da Copa de 1994. Nunca foram encontradas. Relatos de mortes são constantes na imprensa local, por diversos casos – de acidentes a infartos.

“Isso vem de muito tempo e teve certa continuidade. São casos reais, que eu vi, minha esposa viu, os porteiros. Não são mitos urbanos. Esse mistério é real”, contou ao jornal argentino La Nación o administrador do estádio, Flores Rodriguez. Além de mortes e desaparecimentos, há histórias sobre coisas que acontecem sozinhas, como o acionamento do sistema de irrigação durante uma partida da liga nacional. A lenda atraiu religiosos, que costumam frequentar os arredores da construção.

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