Stalking é crime e afeta principalmente mulheres, pessoas negras e LGBTQIA+. É hora de denunciar e exigir que as leis sejam aplicadas de forma justa

Ontem, em “Dona de Mim”, a personagem Kamila viveu um dos momentos mais duros da trama: após ser alvo de perseguição constante, ela acabou vítima de abuso sexual. A novela trouxe para a ficção um tema que, infelizmente, é uma dura realidade para milhões de mulheres brasileiras — o stalking.
O termo, que vem do inglês to stalk (“perseguir à espreita”), designa um comportamento de perseguição obsessiva e repetida, seja presencial ou pelas redes sociais. O stalker invade a privacidade, insiste em contatos não desejados e, muitas vezes, coloca em risco a integridade física e psicológica da vítima. No caso da personagem Camila, a escalada de perseguição culminou em violência sexual — um desfecho trágico que alerta para os perigos reais desse tipo de crime.
Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 8,5 milhões de mulheres foram vítimas de stalking em apenas um ano. Em 2023, o número de registros de perseguição contra mulheres no Brasil chegou a quase 80 mil denúncias, um aumento expressivo desde a criminalização em 2021. Esses números mostram que o que vimos na TV não é exagero, mas um reflexo de uma violência cotidiana.
O artigo 147-A do Código Penal, incluído pela Lei 14.132/21, tornou a perseguição (stalking) crime, com pena de seis meses a dois anos de prisão, além de multa. A pena pode ser aumentada em casos que envolvem mulheres, crianças, adolescentes, idosos ou uso de armas.
Como identificar e agir
Assim como Kamila, muitas vítimas inicialmente não reconhecem a gravidade da perseguição, interpretando-a como insistência ou ciúmes. No entanto, sinais como contatos insistentes mesmo após negativas, presença inesperada em locais frequentados, mensagens anônimas ou perfis falsos nas redes sociais são alertas importantes.
É fundamental reforçar que nenhuma mulher é culpada por expor sua vida nas redes sociais ou por circular livremente em espaços públicos. O problema nunca está na vítima, mas no comportamento abusivo do agressor.
Mas e o que a vítima de stalking pode fazer?
Registrar ocorrência: o boletim de ocorrência pode ser feito presencialmente ou online, inclusive em Delegacias da Mulher.
Guardar provas: prints de mensagens, fotos, gravações e testemunhas são essenciais para fortalecer a denúncia.
Ligar 180 ou 190: canais de atendimento oferecem acolhimento e emergência imediata.
Buscar apoio: familiares, amigas e serviços de psicologia e assistência jurídica podem dar suporte emocional e prático.
Quando uma novela como “Dona de Mim” traz para o horário nobre o debate sobre o stalking, abre-se espaço para que mais mulheres identifiquem sinais de perigo, se sintam legitimadas a denunciar e cobrem ação policial. A ficção, nesse caso, cumpre um papel social fundamental: transformar dor em alerta coletivo.
Se a história de Kamila é ficção, a de tantas brasileiras é realidade. Reconhecer os sinais, denunciar e exigir proteção são passos essenciais para romper o ciclo da violência e garantir que nenhuma mulher tenha sua liberdade ameaçada por um perseguidor.

Falo também de um lugar de experiência. Eu mesma já fui vítima de stalking no passado, e sei o quanto esse tipo de violência mexe com nossa autoestima, com nossa confiança e até com nossa percepção da realidade. Em muitos momentos, me culpei por compartilhar a minha vida nas redes sociais, como se isso fosse um convite para que alguém ultrapassasse meus limites. Quando busquei atendimento policial, fui recebida com olhares de desconfiança e frases que descredibilizavam minha dor. Essa sensação de ser duplamente violentada — pelo agressor e pelo sistema — ainda marca muitas de nós.
É por isso que falar sobre stalking exige atravessar também os recortes de gênero e de raça. Mulheres negras, periféricas, indígenas e LGBTQIA+ enfrentam ainda mais barreiras para serem ouvidas e levadas a sério. Não é apenas sobre violência individual, mas sobre uma estrutura que decide quais corpos merecem ser protegidos e quais podem ser descartados. A seletividade do sistema de justiça reforça desigualdades históricas e expõe as vítimas mais vulneráveis a uma espiral de silenciamento.
Mesmo diante dessas dificuldades, é fundamental insistir na denúncia, porque o silêncio só alimenta a impunidade. Mas não basta apenas termos leis no papel — precisamos garantir que elas sejam efetivamente cumpridas, que delegacias estejam preparadas para acolher as vítimas sem julgamento, e que a sociedade como um todo reconheça o stalking como violência e não como exagero ou capricho feminino. É urgente construir uma cultura que responsabilize os agressores, proteja as vítimas e não naturalize a perseguição como se fosse parte da vida de quem ousa existir livremente.
Ao trazer à tona essas questões, não falo apenas como pesquisadora ou comunicadora, mas como mulher que já esteve no lugar de vítima de stalking. Sei como é sentir a culpa deslocada para os ombros de quem sofreu, como se a responsabilidade fosse minha por compartilhar fragmentos da vida nas redes sociais. Sei também como é enfrentar o descrédito de quem deveria acolher, quando um boletim de ocorrência vira quase uma confissão de imprudência e não uma denúncia legítima. É justamente por isso que insisto na importância de denunciar: porque silenciar só fortalece a impunidade.
Ainda que o caminho seja árduo, é fundamental que as leis não sejam apenas marcos no papel, mas dispositivos vivos, aplicados e respeitados. O Brasil não pode continuar normalizando que mulheres, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+ e outros corpos dissidentes sejam os alvos preferenciais da violência e, ao mesmo tempo, os menos levados a sério pelo sistema de justiça. Esse é um recorte doloroso, mas urgente, que mostra que não basta termos leis modernas: precisamos de um Estado e de uma sociedade que realmente as cumpram.
Falar disso em primeira pessoa não é apenas exposição, mas também resistência. Porque transformar dor em palavra é uma forma de não permitir que ela seja apagada ou reduzida ao silêncio que tantos esperam de nós. E, se há algo que aprendi, é que o silêncio nunca nos protegeu.
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