O Museu de Vassouras reabre em prédio histórico restaurado, trazendo narrativas afro-brasileiras, indígenas e femininas e se consolidando como referência cultural no Vale do Café

Em Vassouras, no coração do Vale do Café fluminense, a memória acaba de ganhar um novo endereço. No dia 30 de agosto, foi reaberto o antigo prédio do Hospital da Santa Casa de Misericórdia, agora transformado no Museu de Vassouras. Tombado em nível federal desde 1958, o edifício passou por seis anos de obras de restauro e requalificação, aprovadas e acompanhadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Mais do que um espaço expositivo, o Museu de Vassouras nasce como referência cultural e crítica para toda a região, integrando passado, presente e futuro em um só lugar.
Arquitetura preservada e contemporânea
O restauro preservou elementos originais do prédio histórico e, ao mesmo tempo, adaptou o espaço às necessidades de um museu do século XXI. São 3.331 m² de área construída, distribuídos em salas expositivas, espaços educativos, ambiente multimídia, pátio, jardins, loja e café.
O projeto arquitetônico foi conduzido por Maurício Prochnik, o de interiores pela arquiteta Gabriela de Matos, e o paisagismo por Marcos Sá, que valorizou espécies típicas da região, como palmeira Pati, café e jabuticabeira — símbolos vivos da memória local.
Vale do Café: riqueza, desigualdade e resistência
O chamado Vale do Café abrange uma região do interior do Rio de Janeiro que, entre os séculos XVIII e XIX, tornou-se o epicentro da produção cafeeira no Brasil. Vassouras despontou como a capital simbólica desse território, acumulando riquezas que sustentaram parte significativa da economia nacional e projetaram o país no mercado internacional.
O auge do café trouxe luxo e ostentação: casarões neoclássicos, igrejas monumentais e uma vida social intensa, com saraus, bailes e a presença constante da corte imperial. Não à toa, Vassouras recebeu o apelido de “Princesa do Café”.
Mas por trás desse esplendor, escondia-se a brutalidade de um sistema escravocrata que trouxe milhares de africanos para trabalhar nas plantações. A força de trabalho escravizada foi responsável por cada saca exportada e por cada palacete erguido. Homens, mulheres e crianças foram arrancados de suas terras e submetidos a condições desumanas, em um processo que marcou profundamente a cultura e a identidade da região.
Muito antes do café, o território já era ocupado por povos indígenas, que foram expulsos, dizimados ou assimilados à força pelo avanço colonial. Hoje, o Museu de Vassouras busca dar visibilidade a essa presença, frequentemente apagada das narrativas oficiais.
Personagens que moldaram a história de Vassouras
A memória do Vale do Café também pode ser contada a partir de seus personagens. Entre os mais conhecidos está o Barão de Vassouras, Francisco José Teixeira Leite, grande produtor de café e figura central da elite agrária. Sua família deixou marcas profundas na cidade, financiando obras e consolidando a imagem de Vassouras como centro do poder cafeeiro.
Outro nome importante é o da Baronesa de Campo Belo, Eufrásia Teixeira Leite, sobrinha do Barão de Vassouras. Reconhecida como uma das primeiras mulheres a se destacar no mercado financeiro brasileiro, Eufrásia herdou a fortuna da família, investiu em títulos públicos e empresas, e quebrou barreiras em um universo dominado por homens. Sua trajetória simboliza tanto os privilégios da elite cafeeira quanto a força feminina em meio às convenções sociais da época.
Por outro lado, as vozes das pessoas escravizadas, embora menos registradas, também se fazem presentes em relatos e tradições orais. Entre elas, a resistência cultural dos africanos deixou marcas no sincretismo religioso, nas festas populares e até mesmo na culinária que hoje compõem a identidade do Vale do Café.
A decadência e a reinvenção de Vassouras
Com o tempo, o ciclo do café entrou em declínio, provocado pelo esgotamento das terras, pela concorrência internacional e, sobretudo, pela abolição da escravidão em 1888, que desestruturou o modelo econômico da região. Muitas famílias da elite perderam suas fortunas, e Vassouras precisou se reinventar.
O que antes era símbolo de poder e riqueza transformou-se em patrimônio histórico. Hoje, os casarões, fazendas e igrejas fazem parte de um circuito turístico que, junto ao novo museu, reforça a importância de revisitar esse passado não apenas pela ótica da grandiosidade, mas também pelas contradições sociais que o sustentaram.
Mulheres e suas marcas na história
No Museu de Vassouras, a narrativa feminina ganha destaque: das baronesas que desempenharam papéis de poder e influência às mulheres negras e indígenas, que garantiram a sobrevivência de suas famílias e comunidades em meio à opressão. Essa presença múltipla permite compreender a cidade e a região como espaços de disputas, resistências e transformações.

Pedagogia, emoção e novas narrativas
O museu propõe uma experiência interativa, em que pedagogia e emoção caminham juntas. A ideia não é estetizar a dor, mas provocar reflexão crítica, permitindo que o visitante sinta e reconheça as múltiplas camadas da memória regional.
Além disso, o espaço abriga o Memorial Judaico, em homenagem a Benjamin Benatar e Morluf Levy. Restaurado e integrado ao museu com curadoria de Ilana Feldman, o memorial mantém os jardins originais de Roberto Burle Marx, renovados em parceria com o escritório que leva seu nome, uma ponte entre tradição e contemporaneidade.
Um patrimônio vivo de memória crítica
Mais do que devolver um edifício histórico à cidade, o Museu de Vassouras representa a consolidação de um ativo cultural vivo. Ao reunir memórias afro-brasileiras, indígenas, femininas e judaicas, o espaço transforma-se em ponto de encontro para turistas, comunidades locais, pesquisadores e estudantes.
Visitar o museu será mergulhar em uma experiência que vai além da contemplação arquitetônica: é reconhecer as contradições do passado, honrar ancestralidades e ressignificar o Vale do Café como território de aprendizado, resistência e identidade.
Embora o Museu de Vassouras ainda esteja em fase de montagem de suas exposições permanentes e temporárias — previstas para inauguração no final do ano — o prédio histórico já está aberto à visitação.
Os visitantes podem explorar os jardins restaurados, o pátio, os ambientes multimídia e o Memorial Judaico, além de vivenciar a arquitetura preservada do antigo Hospital da Santa Casa.
O Museu de Vassouras, mesmo antes de sua inauguração completa, já se apresenta como um espaço de memória crítica e cultural, pronto para receber turistas, estudantes, pesquisadores e toda a comunidade interessada em conhecer a riqueza e as contradições da história regional.
- Brunch franco-brasileiro no Santa Teresa MGallery
- Parque Nacional de Itatiaia amplia experiência com hospedagens
- Nova York: o mundo em uma cidade
- Orlando e os Reinos da Imaginação
- Elton John, Gilberto Gil e Stray Kids são anunciados no Rock in Rio 2026
- A violência contra a mulher no Brasil: emergência permanente











