Os dois países com maior número de mortes por Covid-19, Estados Unidos e Brasil, convivem com uma explosão de protestos contra o racismo e civis descontentes com as injustiças de autoridades
O Estados Unidos está no nono dia de protestos, com milhares de pessoas nas ruas em mais de 70 cidades, pedindo justiça por George Floyd, 46 anos, negro sufocado por um policial branco, no dia 25 de maio, em Minneapolis, depois de detido sob suspeita por tentar usar uma nota falsa de US$ 20 num supermercado.
O crime gerou uma explosão movida pela frustração genuína e legítima ao longo de décadas de falha nas práticas policiais e no sistema de justiça criminal nos EUA. E parece que atingiu o limite da paciência, não só dos negros, mas todos os civis que estão cansados de tanta injustiça no mundo.
Diariamente a cidade de Nova York é invadida por protestos nas quatro áreas – Manhattan, Queens, Brooklyn e Bronx – que são realizados ao mesmo tempo por milhares de pessoas. Gerando, às vezes, confusão e vandalismo quando o sol se põe.
A situação se agravou tanto, que o governador do estado Andrew Cuomo determinou toque de recolher ás 20 horas, que ontem, novamente, não foi respeitado. E tanto ele, quanto o prefeito, Bill de Blasio, dizem ainda que as manifestações podem atrasar a cidade na luta contra o COVID-19.
“Para aqueles que fizeram sentir sua presença, fizeram ouvir suas vozes. A coisa mais segura a partir deste ponto é ficar em casa, obviamente, porque não queremos pessoas próximas uma das outras transmitindo esta doença “, disse De Blasio.
O governador acrescentou que as filmagens dos protestos mostram alguns manifestantes sem máscara e que distanciamento social não existe durante manifestações como essa. “E agora reuniões de massa, dias antes de abrirmos a cidade de Nova York. Que sentido isso faz?”, Disse Cuomo.
Coincidentemente, no Brasil, na mesma semana da morte de Floyd, o menino João Pedro, 14 anos, foi morto dentro de casa por policiais durante uma operação em São Gonçalo, Rio de Janeiro. A revolta dos negros brasileiros, que sofrem há anos com a brutalidade da polícia e o preconceito da elite brasileira, só aumentou. Lembrando que o Brasil foi o último país do mundo a abolir a escravidão.
Com isso, não demorou muito para os protestos contra o racismo começarem no Brasil, influenciados pelos dos EUA. Mas até que ponto podemos comparar essas histórias?
Conversamos com brasileiros que vivem nos EUA e têm dupla nacionalidade. Luis da Silva mora em Nova York desde 2005 e dirige o escritório da ONG Central Única de Favelas (CUFA), que funciona num casarão no Brooklyn.
“Não podemos nos esquecer que essas rebeliões são consequências de vários fatores, inclusive nesse momento de pandemia, em que as pessoas tiveram uma mudança de vida radical, principalmente pobres e negros. Os protestos são quase como uma válvula de escape, manifestando tudo ao mesmo tempo”, diz ele, comentando sobre o racismo no seu País: “Por mais que tenhamos uma lei no Brasil que diz que a prática do racismo é crime inafiançável, o número de pessoas condenadas por racismo quase não existe.
As pessoas desrespeitam os negros em todos os lugares, com ofensas e xingamentos pesados, teor racista, e tudo acaba com um pedido de desculpa sem nenhuma consequência”.
Ele completa dizendo que essa história do Brasil ser um país mestiço confunde o ponto de vista dos estrangeiros, e os negros são prejudicados, vivendo nas piores condições. Com isso, a quantidade de negros presos injustamente e mortos é um grave problema no Brasil.
“Aqui nos EUA, os negros conhecem seus direitos e, por isso, sabem como argumentar e reconhecer exatamente como são tratados. Estamos protestando contra a polícia claramente racista e sabemos que existem movimentos fascistas, nazistas por trás disso tudo. Isso tem que acabar, não há mais espaço para o extermínio de gente preta”.
Antes de morar em Nova York, Luis era um dos integrantes do grupo de rap Defensores do Movimento Negro (DMN), durante 15 anos, e costumava palestrar em periferias e favelas paulistanas sobre racismo e autoestima. “O problema é que os negros do Brasil ainda querem se ajustar ao universo branco por acreditar que ‘somos todos iguais’, mas isso não passa de ilusão. Temos culturas diferentes, somos descendentes de um continente diferente.
O mais importante é o respeito — se não gostam da gente, não camuflem, assumam a intolerância para que a gente não se iluda e crie nossas próprias condições de prosperidade”. Ele também chama atenção para a passividade do negro brasileiro em relação ao americano.
“Os brasileiros acostumaram com essa situação constante, o que não faz nenhum sentido. Existem algumas lutas a serem travadas, como fazer com que as leis de proteção ao ser humano sejam realmente respeitadas e que atos racistas sejam punidos. Também gostaria que o nosso povo não se deixasse dividir por classes sociais, graus de instruções e categorias artísticas, o que acaba os distanciando naturalmente da maioria pobre e preta do Brasil, para atenderem a uma categoria mais intelectualizada sobre a questão racial”.
Existe solução? “A melhor saída é que não importa se é negro de favela ou doutor; a nossa luta tem que ser por justiça. Gostaria que os bons policiais abrissem a boca e falasse algo contra essa brutal desumanidade, para que realmente possamos acreditar que não está a serviço dessa corporação e aceitamos tudo calado”.
Com a mesma linha de pensamento de Luis, a carioca Monica Costa, que se mudou há 33 anos da favela em Santa Teresa, Rio de Janeiro, para Maryland, nos EUA, afirma que existe, sim, uma grande diferença na formação dos negros americanos e brasileiros e que a escola pública de qualidade é uma das grandes vantagens americanas. “Aqui a constituição é estudada na escola, o discurso é inclusivo e eles fazem parte da nação, dando o poder de argumentar e conhecer seus direitos. Ao contrário do Brasil, em que o governo prefere deixar o povo cego, o que nos deixa sem saber como nos defender”
Monica, que hoje é empresária bem sucedida, dona da empresa de mecânica Wilniq Auto Body & Mechanical Repairs, destaca a importância dos protestos e a falta de humanidade em meio à pandemia, em que o povo preto ainda é tratado com menos valor. “Os protestos são a única maneira que temos de sermos ouvidos. Só somos ouvidos quando entramos em ação e fazemos barulho. Como mulher negra, mãe de dois filhos, é muito frustrante ver isso tudo acontecendo. Já temos evidência suficiente de que esse jogo não é justo”, diz ela, acrescentando que, segundo estudos feitos por entidades americanas, qualquer pessoa que chega aos EUA sem documentos, entre dois a três anos morando no país, já está fazendo mais dinheiro do que qualquer negro cidadão americano formado por uma faculdade.
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