Escritor dadaísta e surrealista, sua obra mais famosa tentava relatar o cotidiano de uma das famosas passagens da capital francesa; uma delas está lá até hoje
Uma das canções mais famosas do cantor ítalo-francês Yves Montand dizia, sobre os bulevares de Paris, que “há tantas coisas, tantas coisas, tantas coisas para ver”, como “as cabines e bazares/ bancas, loterias/ Jornaleiros falantes que seduzem os populares com seus contos/ Os vendedores de castanhas quentes/ E então, novamente, oferecendo-se inesperadamente, passagens cobertas”.
Ligando ruas distintas por dentro dos prédios, essas galerias de compras herdadas da Paris do século 19 nunca deixaram de fascinar escritores e poetas, incluindo um dos mais famosos deles: o parisiense Louis Aragon.
“Foi ele quem nos colocou na literatura”, disse o escritor francês Olivier Barbarant ao site La Croix. Grande conhecedor de Aragon e do seu trabalho, ele recordou que, em 1926, quando foi publicado o clássico O Camponês de Paris (Imago, 1996), o escritor dedicou um capítulo inteiro à descrição de uma das passagens da cidade: a da Ópera, cujo extinto café Certa era ponto de encontro com André Breton, Paul Éluard, Philippe Soupault, Francis Picabia e outros nomes do dadaísmo e do surrealismo.
A passagem da Ópera não existe mais: ela foi suprimida anos depois da publicação do livro, quando a prefeitura de Paris terminou de estender o Boulevard Haussmann – uma obra que aparece como denúncia no capítulo dedicado a ela. Porém, os leitores de Aragon podem conhecer outra galeria descrita por ele em seus livros: A Passagem de Jouffroy, que aparece no primeiro romance do autor, Anicet ou Panorama (sem tradução para o português).
“No livro, ele a rebatizou de ‘passagem Cosmorama’. Então, alguns deduziram que ele estava situando, na verdade, a passagem Panoramas, que hoje fica do outro lado do Boulevard Montmartre, mas o próprio Aragon confirmou que se tratava da Passagem de Jouffroy.” A galeria fica no Boulevard Montmartre, entre as estações Richelieu-Drouot e Grands Boulevards, ao lado do Museu Grévin.
Olivier Barbarant, seguindo o poeta, costuma visitar a passagem até hoje. A entrada é indicada por um pórtico monumental que divide a atenção com o letreiro do museu: “Cabinet fantastique. Palais des mirages” (“Lugar fantástico. Palácio de miragens”), inscrito em letras vermelhas na fachada.
Nada parece ter mudado em mais de um século e meio do livro de Aragon. Alinhados sob um alto arco de metal arco e vidro, todos os painéis, janelas e espelhos multiplicam o brilho das lâmpadas antigas: ali estão um café, um salão de chá, lojas de bonecas e brinquedos em miniatura, pedras e joias, móveis, louça de barro, copos, roupas de cama e livrarias. Ao contrário de outras galerias, não há um escritório de vendas de bilhetes aéreos ali.
Há ainda um cabeleireiro e, mais inesperadamente, um hotel romântico curioso, anunciado por um relógio: o Hotel Chopin, antigo “Hotel des familles” (Hotel das Famílias), inaugurado em 1846, mesmo ano que a galeria foi aberta. Uma das histórias diz que Aragon dormiu em um de seus quartos com vista para os telhados de Paris, mas o escritor nunca confirmou sua veracidade.
Já os personagens são mais reais do que a lenda: ali está ainda hoje um comerciante de bengalas cuja casa abriu em 1909, e que pode ter chegado a conhecer o escritor. Em O Camponês de Paris, Aragon descreve com minúcia uma loja de bengalas na Passagem da Ópera que se parece muito com a da Jouffroy, com “artigos de luxo, muitos e variados, organizados de modo a apreciar tanto o corpo quanto a alça”.
O mesmo pode ser dito quando se alcança a grande livraria da passagem, semelhante à Rey, descrita em O Camponês de Paris. Rica em “revistas, romances populares e publicações científicas que se pode consultar à vontade sem comprar”. No final dela, a passagem ganha uma bifurcação, na qual se ganha as duas ruas adjacentes novamente por meio de duas escadarias. A atmosfera fantástica é estabelecida de forma insidiosa e, como diz Olivier Barbarant, é possível sentir o mesmo que Aragon quando ele escreveu que as passagens de Paris fazem parecer que se “está em outro lugar, em um espaço falso que não é nem fora nem dentro, que não é nem interior nem exterior, onde tudo pode acontecer”.
O Camponês de Paris foi publicado pelo surrealista e comunista Louis Aragon em 1926 usando um estilo de escrita conhecido como o “maravilhoso cotidiano” para criar imagens fantásticas de situações rotineiras mundanas. A primeira metade do livro pinta uma estilosa imagem de uma das famosas galerias da capital francesa, a Passage de l’Opéra – antes da sua demolição.