O Embarque na Viagem esteve frente a frente com Mário Thompson, o fotógrafo que registrou momentos especiais e raríssimos da MPB.
Das dezenas de capas de LPs lançados no Brasil, desde a década de 70, com certeza você, amante ou não da música brasileira, já segurou nas mãos pelo menos um exemplar, seja de LP, CD ou até mesmo a antiga fita cassete, cuja foto de capa é de autoria de Mário Luiz Thompson, o fotógrafo da MPB.
João Gilberto, Belchior, Gal Costa, Alceu Valença, Zé Ramalho, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ednardo e tantos outros, tiveram o olhar caprichoso de Mário. Muitos estreando no cenário musical e, hoje, grandes ícones da nossa música, tiveram seus LPs transformados em verdadeiras raridades entre os colecionadores.
Depois de alguns meses de ligações telefônicas, contato feito primeiramente através de uma querida amiga advogada e, também, pesquisadora cultural – K. Freire – tentei agendar uma data que nos permitisse tempo para conversar e, obviamente, admirar algumas fotografias. Na época, Mário, ainda abalado pela morte do amigo Belchior, conversava rapidamente comigo por telefone, mas, nossas agendas não permitiam o tão esperado encontro.
Finalmente conseguimos sentar e conversar. A casa, nos anos 70 e 80, era ponto de encontro e passagem obrigatória de vários artistas. Eu, ao mesmo tempo que trabalhava, estava realizando um sonho e conhecendo o homem que passei a chamar de Os Olhos da MPB, Mário Thompson.
Fui recebido por um sorriso e uma energia inexplicável que, logo, se transformou em um receptivo e carinhoso abraço de boas vindas. Foi como se dois antigos amigos se reencontrassem. Mário pediu que eu me sentasse e o papo rapidamente fluiu com histórias maravilhosas sobre sua carreira e sobre os bastidores da música brasileira, intercaladas com alguns assuntos relativos à minha pesquisa de mestrado e ao Estado onde nasci, Pernambuco. Ele tem um enorme carinho pelo Nordeste brasileiro.
A saudosa e psicodélica atmosfera setentista se fazia presente durante a nossa conversa. Seja através de lembranças, de suas antigas máquinas fotográficas, de filmagens ou das próprias fotografias que, aos poucos, tive o prazer de apreciar. Era como se, de alguma maneira, em alguns momentos, uma máquina do tempo me transportasse para uma incrível viagem ao passado.
Pedi licença e liguei o gravador, ao mesmo tempo que ele me mostrava um exemplar do LP “Vivo” de Alceu Valença, com uma pergunta: “Você tem esse aqui?” Sorrindo, respondi que sim. Este disco é a base da minha pesquisa acadêmica.
A casa é um verdadeiro museu onde podemos apreciar não somente fotos de cantores e cantoras, mas também, de paisagens e de pessoas anônimas que Mário fotografou Brasil a fora. Além das fotografias e do estúdio, Mário Thompson tem guardadas em casa, com muito carinho e cuidado, as obras criadas por sua mãe, a artista Iris Thompson.
Quero agradecer imensamente a Mário por me receber em sua casa e disponibilizar o seu tempo para esse bate papo. Agradeço também ao amigo Hernan, sobrinho de Mário, que desde o primeiro dia em que estive lá sempre se mostrou muito receptivo. Estendo ainda o meu agradecimento aos funcionários que lá estavam e que me receberam com todo carinho, na ocasião. Deixo também um abraço forte aos amigos Gabriel Thompson, filho de Mário, pessoa maravilhosa a qual pude conhecer posteriormente e Ricardo Saldivar, fotógrafo e produtor de audiovisual.
ENTREVISTA:
EMBARQUE NA VIAGEM – O que levou você a ingressar no mundo da fotografia?
MÁRIO THOMPSON – “Bem, na fotografia foi um pouco, acho, por influência do meu pai que também gostava. Ele não era fotógrafo (profissional), mas, fotografava, e, em relação à arte, música, cultura em geral, né, aí foi influência da minha mãe que era uma multi-artista. Agora, com meu pai, ele tinha uma máquina e às vezes fotografava na máquina dele até que depois eu comprei uma máquina minha e… por que fotografar música né? Bem, também por influência da minha mãe, eu comecei a fotografar, sem intenção de ser profissional nessa área, nesse ofício, mas aí um dia a Gal Costa veio aqui em casa e “eu quero suas fotos no meu disco.” Aí, depois, o Vinícius e foi indo, até que me tornei um fotógrafo especializado em fazer capa de disco… e aí tem todo um trabalho que veio depois, a trajetória minha que veio depois, sempre no sentido de por que fotografar música? Porque muitos músicos na época estavam começando a carreira e, às vezes, não tinham nem como pagar o trabalho de um fotógrafo e aí entrava eu fotografando, fornecendo, fazendo as fotos necessárias pro disco de cada um deles, né? E isso me satisfazia, porque, eu não ganhava nada, mas, era uma forma que eu tinha para demonstrar afeto, contribuindo com aquilo que eu gostava, ou seja, dizer sim, estar próximo do que se gosta e do que se acredita. Em síntese é isso.”
EMBARQUE NA VIAGEM – Eu vi também, pesquisando sobre sua carreira, alguns artistas internacionais. Você poderia citar alguns desses que você trabalhou, fotografou ou esteve próximo?
MÁRIO THOMPSON – “Sim, estive perto de artistas que são o máximo, digamos assim né, Miles Davis, B.B.King, Ravi Shankar, Stanley Clarcke, Stanley Jordan, Ray Charles… fizemos fotos deles todos.”
EMBARQUE NA VIAGEM – Como você conheceu Alceu Valença? Fale sobre esse primeiro contato que você teve com ele.
MÁRIO THOMPSON – “Bem, é incrível né, num show de Alceu, tava lá eu com minha máquina fotografando. Não conhecia o Alceu, não tinha visto nenhum show de Alceu, e tava lá, acho que no Tereza Raquel (teatro), fotografando, como sempre, indo atrás da música né e me relacionando assim … Eu era um cara que era movido a música, tanto na minha casa, sem fotografar e no momento que estava fotografando eu coloquei a máquina fotográfica como um instrumento para eu estar perto de quem eu gostava. Aí eu tô lá fotografando e vem o Alceu, assim, pra me provocar como ele provocava toda plateia. Vem o Alceu, assim com o pé, assim, como se fosse bater, dar uma “pezada”, na minha máquina, né, e eu não sai do lugar. Eu continuei no lugar e ele “pá” com o pé e eu fotografando o pé, né, (risos) e isso mostrava uma relação intima que nós estávamos tendo do pé com a máquina já, e, ou se não a mão. Aí isso fez também com que a gente se conhecesse lá nos camarins da vida. Nos camarins também eu fotografava, e ele percebia também que o meu jeito de fotografar era um jeito que não atrapalhava nada o show. Eu não ficava na frente de ninguém da plateia, eu não derrubava nenhum instrumento, eu só fotografava no momento certo. Então, ele entendeu um pouco isso até que na sequência ele resolveu dá pra mim fazer a capa do “Vivo”, né, que foi a explosão da ‘musicália nordestina’.”
EMBARQUE NA VIAGEM – Era o período da ditadura militar, então, como era estar nesses espetáculos, sabendo que a MPB estava numa constante vigilância, a qualquer momento podia acontecer alguma coisa? Como era pra você que estava lá, que andava com eles, que fotografava, como foi viver essa tensão?
MÁRIO THOMPSON – “Eu acho que, justamente, os artistas,, diante dessa segregação da livre expressão com essa forçação de barra de “não termos a livre expressão de pensamento, eles se realizavam através de sua arte. Então você vê em trechos de letras de todos, assim, Alceu, ou de Chico Buarque, de muitos da época, né, que era um abaixo a ditadura bem encaminhado, né?”
EMBARQUE NA VIAGEM – Você também fotografou Belchior e Ednardo. Há uma história interessante e engraçada sobre a capa do Lp de Ednardo, sobre a luz do Ceará, conte sobre isso.
MÁRIO THOMPSON – “Foi interessante porque… Belchior era uma pessoa muito amiga, inclusive quando veio pra São Paulo eu emprestava as roupas pra ele ir no show, era meu vizinho. Fui padrinho de casamento, ele pegou algumas esculturas de minha mãe aqui e levou lá pro Crato, fez exposição lá no Crato, era muito amigo. O Ednardo, foi a pessoa que fiz mais capa de disco. Fiz umas cinco, seis capas de discos pra ele e já me hospedei na casa dele no Ceará, muito amigo também, da mãe dele, dos irmãos… Aí o Ednardo falou assim: ‘Mário quero que você faça a próxima capa que vai se chamar Terra da Luz mas eu quero fazer em Fortaleza porque eu tô com muita saudade do meu pai. Você não quer vir aqui pro Rio e eu mando umas passagens e a gente vai junto na gravadora pra falar com o Mariozinho Rocha?’ E eu falei: eu vou. Chegando lá na sala do Mariozinho eu falei assim: Essa capa desse disco do Ednardo, Terra da Luz, tem que ser feita no Ceará porque só lá tem essa luz que eu quero, faço questão. Falei como fotógrafo, né? Aí fomos pro Ceará, ficamos na casa do Ednardo e chovia pra caramba e fizemos fotos, mas, tudo com aquela chuva e não dava conta. Aí a gente voltou aqui pra São Paulo e não tinha nada que prestasse, pelo menos, naquela qualidade que a gente desejava. Aí a gente foi andando por essa rua aqui (aponta pro lado da casa dele), pegamos a direita pra ir num buteco e no caminho eu fiz uma fotos e aí de repente pintou uma foto linda e se tornou a capa Terra da Luz. Aí na gravadora o Mariozinho Rocha falou assim: ‘Puxa, vocês têm razão. Só no Ceará tem essa luz!’. Relembra aos risos.
EMBARQUE NA VIAGEM – Dando uma olhada na sua história eu vi que você teve encontros com Lennon e Janis Joplin. Se você puder comentar um pouco sobre os dois, seria importantíssimo.
MÁRIO THOMPSON – “Eu estava na casa do namorado da minha prima, lá em Nova York. Eu tinha vindo de Londres e fui lá pra Nova York e eu tinha levado um pouco de “fumo” que chegou ainda em Nova York. Fui fumando, mas, sobrou um pouco pra chegar em Nova York, ainda, com um pouco do fumo daqui né? Aí, ah, antes disso eu estava lá em Berlin na casa de um jornalista e todo mundo falava: ‘ah, o Glauber quer te encontrar’, o Glauber quer te ver’. Mas, eu não conheço o Glauber. ‘Mas, ele tá doido pra te encontrar, etc’. Aí um dia eu encontro o Glauber e eu falo assim: Ô, diga lá Glauber! Aí ele falou ‘Você tem uma coisinha baiana, é verdade?’ (risos).
Aí eu cheguei em Nova York e fiquei na casa do namorado da minha prima e ele conhecia o Lennon. Um dia a gente foi lá e eu apresentei a ‘coisinha baiana’ lá pro Lennon e aí o jeito de eu agir, de me relacionar, de tentar falar inglês, de apresentar, de lavar louça, acabei indo lá mais vezes até que ele me convidou pra ficar lá uns tempos e eu fiquei uns dias. Mas, eu era, assim, meio que um serviçal da casa e apresentando os baseados. Os baseados era eu que enrolava.
Janis Joplin foi lá na Bahia. Eu fiquei numa casa lá que recebia as pessoas do mundo. Só tinha maluco, quer dizer, eu era doido mas não era maluco (risos), até que a Janis ficou na mesma casa, ela se hospedou na mesma casa, aí aconteceu uma empatia, a gente ia pra praia de noite, depois de ter queimado um baseado, a gente ia pelado pra praia cantando pra lua, cantando pro mar, pras estrelas, como amigos. Ficamos amigos assim, de viver aqueles momentos em Salvador.”
EMBARQUE NA VIAGEM – Sobre dona Íris, sua mãe, ela participou da Semana de Arte Moderna. No Brasil atual, você acha que o país precisa de mais momentos como esse de 22? O que você acha da atual cena do Brasil?
MÁRIO THOMPSOM – “Você sabe tudo né? (risos) Acho que precisa muito porque agora tem que se separar o joio do trigo. A gente tem que valorizar aquilo que tem a ver e deletar o restante porque com a informática pintou muita informação e as pessoas recebem aquela informação, mas, não o conhecimento, né, porque quando a pessoa tem que ler o livro, tem que apresentar um trabalho e ela se detém num tema, aí ela produz um agitado. Agora, hoje, por exemplo, você vê as crianças, assim, quando elas estão na mesma sala, uma com o celular na mão e a outra com outro, elas não se comunicam. Cada uma tá com seu celular, ou, se está na janela, numa viagem, elas não olham a paisagem. Então a indústria fonográfica também sofreu muito porque as pessoas agora baixam música, não compram discos, e a indústria fonográfica, pra sobreviver, fica dando espaço para essas músicas: axé, pagode, funk, ou outro segmento.”
EMBARQUE NA VIAGEM – Mário, muito obrigado. Deixarei aqui um espaço para suas considerações finais sobre a fotografia que é a sua área mesmo, um pouco sobre a fotografia atual, se você tem acompanhado…
MÁRIO THOMPSON – “É, eu acho que o espaço pra fotografia também foi um pouco distanciado, mas, a fotografia sobrevive, né? Tanto é que nada seria preservado em termos íntegros se não fosse a fotografia e eu agora tô num momento de procurar botar pra fora o que eu registrei, o que eu produzi ao longo desses anos, através de exposições, mas, principalmente através de livros porque o livro é mais perene, né? Fiz dois livros e agora tô batalhando pra fazer mais três. Dos três, um é o Negra MPB, que tem participação, tem fotos dos negros da nossa música. O outro é Terra e Gente Brasileira, com fotos do Brasil dentro dele. O outro é Bahia De Todos os Encantos. Esse livro vai ser lindo, fotos da Bahia e de compositores brasileiros. Eu também me formei em cinco faculdades, sou advogado, sou jornalista, trabalhei na Veja, trabalhei na Globo, larguei tudo por causa da música brasileira, fotografando né? Investi tudo, minha energia, meu dinheiro nesse trabalho e agora não dá mais pra mudar, né, pela idade que eu tô e agora vou até o fim, até morrer.”
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