Escritor viajou do nordeste ao sul do seu país entre 1979 e 1980 para escrever Viagem a Portugal — um misto de críticas e memórias pessoais
Uma tradição da literatura portuguesa, as narrativas de viagem, em obras como Os Lusíadas, de Luís de Camões, Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, e Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, também fazem parte dos livros do escritor José Saramago (1922-2010). Viagem a Portugal, de 1981, é um exemplo que, desde o título, evidencia a importância da viagem, em que o Prêmio Nobel de Literatura de 1998 percorreu seu país detalhadamente, descrevendo a cada passo as casas, pessoas e paisagens pelas quais passava.
Viagem a Portugal é resultado de uma viagem feita de carro por todo o território português — incluindo Lisboa — entre 1979 e 1980 em que o escritor usou as descrições de monumentos e abundantes referências históricas e literárias para falar de lugares como Miranda do Douro e Castro Verde, a 506 e 191 km da capital, respectivamente.
O livro foi um convite que o Círculo de Leitores lisboeta fez a Saramago por ocasião do seu décimo aniversário. O escritor tomou como base o livro Portugal, escrito por Miguel Torga nos anos 1950, ainda na época da ditadura de António Salazar, em que sai de sua cidade-natal, Trás-os-Montes, no nordeste do país, e chega até a região Sul, nas quentes praias do Algarve. O roteiro, inclusive, foi semelhante na viagem que resultou em Viagem a Portugal.
Quando voltou para a capital, em julho de 1980, o escritor escreveu um artigo dizendo que “o fim de uma viagem é apenas o começo de outra. É preciso ver o que não foi visto, ver outra vez o que se viu já, ver na primavera o que se vira no verão, ver de dia o que se viu de noite. É preciso voltar aos passos que foram dados, para os repetir, e para traçar caminhos novos”. O livro, de fato, inspirou viajantes nos anos seguintes, que passaram a comprar passagens aéreas com estadias mais longas no país.
No entanto, ele não deixa de admitir um tom crítico em relação ao país, por vez em doses de ironia e de questionamentos para apresentar uma visão ácida de Portugal. Foi nessa segunda cidade, por exemplo, que ele encontrou uma forma de criticar a influência do catolicismo em seu país:
“Castro Verde merece o nome que tem. Está num alto e não lhe faltam verduras para aliviar os olhos das sequidões da charneca. Se só de monumentos cuidasse hoje o viajante, mal lhe valeria a pena de vir de tão longe para o pouco que verá, valendo embora tanto atravessar mais de quarenta quilômetros de searas ceifadas. Está aberta a Igreja das Chagas do Salvador, que tem para mostrar ingênuos quadros com cenas guerreiras e um bom silhar de azulejos, mas a matriz, a que chamam aqui basílica real, não. O viajante desespera-se”.
“Por sua insistência em fixar-se nos pequenos detalhes, nos objetos e personagens esquecidos pela historiografia tradicional portuguesa, Saramago pensa ser possível mostrar como prevalece nele uma concepção de história orientada pelo ponto de vista dos ‘vencidos’, dos que ficaram relegados ao silêncio e ao esquecimento”, afirma Shyrlei Gomide, estudiosa da literatura portuguesa e mestre em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em Miranda do Douro, Saramago demonstra encantamento pela Rua da Costanilha, que remonta ao séc. XV. Em Bragança, ele faz apontamentos críticos e ternos sobre a Sé Velha, construída no século XVI, e as muralhas do Castelo de Bragança, em Santa Maria, que cercam quase toda a cidade, mas acaba tendo que se abrigar no Museu do Abade de Baçal, onde conhece a história do soldado José Jorge. Em Azinhoso, no Mogadouro, no adro da pequena igreja da cidade, ele afirma que ali seria o “lugar ideal para assustar os viajantes”, mas é no templo românico de Adeganha que ele confessa certa excitação arquitetônica. Enfim, entre várias notas, ele se diverte com a porca na praça central de Murça, em Vila Real (401 km de Lisboa).
Outros lugares pelos quais passou Saramago no livro são Outeiro Seco, Vinhais, Rebordelo, Lobrigos, Amarante, Telões, Guimarães, Arões, Cabeceiras, Junqueira e Rates, entre vários outros que só são acessíveis lendo as quase 500 páginas do livro.
Para quem concentra a viagem a Portugal em Lisboa, porém, descobre que ali está o principal lugar para os leitores de seus livros interessados em conhecer um pouco mais das visões do escritor sobre seu país e sua capital: a Fundação José Saramago. A sede por si só já vale a visita por estar sediada na chamada “Casa dos Bicos”, construída em 1523 e que, ao longo dos séculos, já serviu para quase tudo — de funções públicas e casa de nobres da corte portuguesa.
Desde 2012, é ali que estão reunidas fotos, vídeos, objetos, como a medalha do Prêmio Nobel, uma reprodução do seu escritório, livros e exposições permanentes e temporárias. Um dos grandes atrativos nas redes sociais é uma escada em que cada degrau contém uma frase de Saramago. À frente da Casa dos Bicos é possível ver uma oliveira, e, no canteiro ao lado, o local onde foram jogadas as suas cinzas.